Retratos De Uma Quarentena

21.5.20
Imagem


Estamos numa nova fase deste desconfinamento. Não é um voltar à normalidade, é um abrir cauteloso de alguns serviços. Há novas normas que todos temos que respeitar e respira-se um medo denso de como será esta nova fase...

Aqui em casa tudo vai continuar da mesma forma. Todos em casa, nós em teletrabalho e os filhotes em escola em casa. Um logística densa e a vivência de uns tempos estranhos sob muitas perspectivas...

Desde dia 13 de março que vim para casa, viemos todos em quarentena para tentarmos minimizar o impacto deste novo Corona Vírus.

Desde então continuei a trabalhar online e do outro lado da minha vida tenho testemunhado muitas formas diferentes de como a quarentena nos tem afetado a todos. Algumas muito particulares, todas muito curiosas e hoje partilho consigo algumas das que mais me fizeram pensar. São 3 situações, mas poderiam ser muitas mais. Elas representam partes de todos nós que merecem ser pensadas, vistas. Pensar sobretudo em como queremos que tudo seja depois, sobre como andamos tantas vezes absorvidos por coisas secundárias, como quando alguma das nossas certezas e seguranças nos falta, podemos olhar de facto para tanta coisa que estando sempre à nossa frente, nem sempre nos é visível.

D. Alice, reformada, 73 anos

... Sabe doutora, eu não posso dizer isto a ninguém, só a si aqui na consulta, mas sabe que isto da quarentena para mim até tem sido bom.
 A doença não, essa se eu pudesse acabava já com ela, mas a quarentena tem sido ótima! Olhe, há meses, muitos meses que eu não via tanto os meus filhos e netos como agora. Há anos que aqui estou sozinha e os meus filhos nunca têm tempo para me vir visitar, ou mesmo para ligar. Bem sei que têm vidas muito atarefadas, é verdade, mas os dias vão passando e nunca ligam. Eu quando lhes ligo sou logo despachada porque ou estão a trabalhar, ou estão a tratar das crianças, enfim, andam lá nas vidas deles.
Agora, não. Trouxeram-me para aqui o tablet e todos os dias os vejo, falo com eles com tempo e até me põem a ver as brincadeiras dos meus netos. Eu estou encantada!
Quanto a sair de casa, eu já passava semanas sem sair, e quando me queixava que me custava muito a sair e a ir às compras, que fico cheia de dores de empurrar o carrinho e de subir com os sacos, diziam-me que eu tinha que sair, que tinha que me esforçar para ir, que isto assim não era vida para mim... Acho que nunca me ouviram quando eu lhes falava das dores que sentia.
Agora perguntam-me de que preciso e ora um, ora outro, quando vão às compras compram as minhas compras, vêm deixar-me os sacos aqui à porta e ainda lhes faço adeus da janela. Isto tem sido tratamento de luxo! Por mim, a doença que vá embora depressa, mas a quarentena pode ficar.



São, trabalha na área financeira, 41 anos. Está neste momento em casa, em teletrabalho, mãe de 3 filhas todas em casa a frequentar a escola em casa.

Hora da consulta, envio mensagem para saber se posso ligar, recebo de volta a mensagem com resposta afirmativa, ligo a video-chamada. A imagem abre, olho para ela, conhecemos-nos há já uns meses, vimo-nos todas as semanas e eu nunca tinha visto este olhar. É um misto de angústia e alívio... Estarei a lê-la bem?
Vou-a cumprimentando enquanto tudo isto passa na minha cabeça e dou-lhe a palavra.
- Ainda bem que podemos fazer estas consultas on-line e que chegou a hora da consulta. Tenho aprendido consigo a chorar, a não ter vergonha de o fazer e a sentir que não é um sinal de fraqueza, mas uma necessidade.
Nunca esta aprendizagem me fez tanta falta.
Hoje deixe-me só chorar... Preciso de chorar aqui consigo, preciso deste tempo só para mim (lágrimas em fio pelo rosto).
Passo o meu tempo a dizer a toda a gente que estamos bem, que isto da quarentena até é bom porque temos mais tempo para estarmos juntos, fiz um plano com todas as tarefas, as miúdas até são responsáveis, que tudo vai passar, que tudo vai ficar bem, ajudo-as nas tarefas, tento resolver os problemas infindáveis do trabalho, ligo aos familiares para ver se estão bem, organizo as listas das compras para sair o menos possível e faço quase todas as compras on-line, ajudo nas tarefas escolares, passo horas no fim de semana a fazer o horário de todas e revejo-o todas as noites quando revejo também os agenciamentos das reuniões do trabalho e como está a concretização dos objetivos, faço as refeições, limpo, e nunca sinto que consigo chegar ao que me proponho. Sinto que falho a todos o momento, mas nem ouso pensar nisto muito. É seguir em frente que amanhã será melhor, e não é, nunca é...
Mas agora não quero falar mais disto. Deixe-me só ficar aqui consigo e chorar...



Rute, Enfermeira, 28 anos

Tenho muito medo.
Eu, que no início adorei ficar a trabalhar no internamento com doentes COVID-19, achei que aí sim eu ia fazer a diferença, e que não sendo de risco, isto nunca me iria afetar, hoje tenho muito medo.
Pensamos que é só uma gripe, só afeta quem é de risco, na televisão aparecem números e os nossos até são números bonitinhos em comparação com Espanha e Itália, mas depois chego ao trabalho e esses números têm nomes, e agonizam de formas que ainda não conhecemos bem, e estão sozinhos. Nós somos as únicas pessoas que vêem, os que conseguem ver-nos. Sem visitas, sem a família...
A doutora não acredita que se pode morrer de solidão?
E depois venho para casa e tenho medo de contaminar os meus. Já não os vejo há semanas e se sofro tanto pela distância, sofro também horrores por poder ser responsável por ver um dos meus a sofrer disto, como vejo os meus doentes.
Engraçado... Agora a aqui na consulta dou-me conta que também eu estou sozinha... tão sozinha...


1 comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...